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Morte e Vida Severina - Canto 10 [French translation]
Morte e Vida Severina - Canto 10 [French translation]
turnover time:2024-06-02 16:21:53
Morte e Vida Severina - Canto 10 [French translation]

CHEGANDO AO RECIFE O RETIRANTE SENTA-SE PARA DESCANSAR AO PÉ DE

UM MURO ALTO E CAIADO E OUVE, SEM SER NOTADO, A CONVERSA DE DOIS COVEIROS

— O dia hoje está difícil;

não sei onde vamos parar.

Deviam dar um aumento,

ao menos aos deste setor de cá.

As avenidas do centro são melhores,

mas são para os protegidos:

há sempre menos trabalho

e gorjetas pelo serviço;

e é mais numeroso o pessoal

(toma mais tempo enterrar os ricos).

— pois eu me daria por contente

se me mandassem para cá.

Se trabalhasses no de Casa Amarela

não estarias a reclamar.

De trabalhar no de Santo Amaro

deve alegrar-se o colega

porque parece que a gente

que se enterra no de Casa Amarela

está decidida a mudar-se

toda para debaixo da terra.

— É que o colega ainda não viu

o movimento: não é o que se vê.

Fique-se por aí um momento

e não tardarão a aparecer

os defuntos que ainda hoje

vão chegar (ou partir, não sei).

As avenidas do centro,

onde se enterram os ricos,

são como o porto do mar;

não é muito ali o serviço:

no máximo um transatlântico

chega ali cada dia,

com muita pompa, protocolo,

e ainda mais cenografia.

Mas este setor de cá

é como a estação dos trens:

diversas vezes por dia

chega o comboio de alguém.

— Mas se teu setor é comparado

à estação central dos trens,

o que dizer de Casa Amarela

onde não para o vaivém?

Pode ser uma estação

mas não estação de trem:

será parada de ônibus,

com filas de mais de cem.

— Então por que não pedes,

já que és de carreira, e antigo,

que te mandem para Santo Amaro

se achas mais leve o serviço?

Não creio que te mandassem

para as belas avenidas

onde estão os endereços

e o bairro da gente fina:

isto é, para o bairro dos usineiros,

dos políticos, dos banqueiros,

e no tempo antigo, dos bangüezeiros

(hoje estes se enterram em carneiros);

bairro também dos industriais,

dos membros das associações patronais

e dos que foram mais horizontais

nas profissões liberais.

Difícil é que consigas

aquele bairro, logo de saída.

— Só pedi que me mandasse

para as urbanizações discretas,

com seus quarteirões apertados,

com suas cômodas de pedra.

— Esse é o bairro dos funcionários,

inclusive extranumerários,

contratados e mensalistas

(menos os tarefeiros e diaristas).

Para lá vão os jornalistas,

os escritores, os artistas;

ali vão também os bancários,

as altas patentes dos comerciários,

os lojistas, os boticários,

os localizados aeroviários

e os de profissões liberais

que não se libertaram jamais.

— Também um bairro dessa gente

temos no de Casa Amarela:

cada um em seu escaninho,

cada um em sua gaveta,

com o nome aberto na lousa

quase sempre em letras pretas.

Raras as letras douradas,

raras também as gorjetas.

— Gorjetas aqui, também,

só dá mesmo a gente rica,

em cujo bairro não se pode

trabalhar em mangas de camisa;

onde se exige quepe

e farda engomada e limpa.

— Mas não foi pelas gorjetas, não,

que vim pedir remoção:

é porque tem menos trabalho

que quero vir para Santo Amaro;

aqui ao menos há mais gente

para atender a freguesia,

para botar a caixa cheia

dentro da caixa vazia.

— E que disse o Administrador,

se é que te deu ouvido?

— Que quando apareça a ocasião

atenderá meu pedido.

— E do senhor Administrador

isso foi tudo que arrancaste?

— No de Casa Amarela me deixou

mas me mudou de arrabalde.

— E onde vais trabalhar agora,

qual o subúrbio que te cabe?

— Passo para o dos industriários,

que também é o dos ferroviários,

de todos os rodoviários

e praças-de-pré dos comerciários.

— Passas para o dos operários,

deixas o dos pobres vários;

melhor: não são tão contagiosos

e são muito menos numerosos.

— É, deixo o subúrbio dos indigentes

onde se enterra toda essa gente

que o rio afoga na preamar

e sufoca na baixa-mar.

— É a gente sem instituto,

gente de braços devolutos;

são os que jamais usam luto

e se enterram sem salvo-conduto.

— É a gente dos enterros gratuitos

e dos defuntos ininterruptos.

— É a gente retirante

que vem do Sertão de longe.

— Desenrolam todo o barbante

e chegam aqui na jante.

— E que então, ao chegar,

não tem mais o que esperar.

— Não podem continuar

pois têm pela frente o mar.

— Não têm onde trabalhar

e muito menos onde morar.

— E da maneira em que está

não vão ter onde se enterrar.

— Eu também, antigamente,

fui do subúrbio dos indigentes,

e uma coisa notei

que jamais entenderei:

essa gente do Sertão

que desce para o litoral, sem razão,

fica vivendo no meio da lama,

comendo os siris que apanha;

pois bem: quando sua morte chega,

temos que enterrá-los em terra seca.

— Na verdade, seria mais rápido

e também muito mais barato

que os sacudissem de qualquer ponte

dentro do rio e da morte.

— O rio daria a mortalha e até um macio

caixão de água;

e também o acompanhamento

que levaria com passo lento

o defunto ao enterro final

a ser feito no mar de sal.

— E não precisava dinheiro,

e não precisava coveiro,

e não precisava oração

e não precisava inscrição.

— Mas o que se vê não é isso:

é sempre nosso serviço

crescendo mais cada dia;

morre gente que nem vivia.

— E esse povo de lá de riba

de Pernambuco, da Paraíba,

que vem buscar no Recife

poder morrer de velhice,

encontra só, aqui chegando,

cemitério esperando.

— Não é viagem o que fazem

vindo por essas caatingas, vargens;

aí está o seu erro:

vêm é seguindo seu próprio enterro

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João Cabral de Melo Neto
  • country:Brazil
  • Languages:Portuguese
  • Genre:Poetry
  • Official site:http://www.academia.org.br/academicos/joao-cabral-de-melo-neto
  • Wiki:https://pt.wikipedia.org/wiki/João_Cabral_de_Melo_Neto
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